Dois anos após um promotor do Rio Grande do Norte ter feito um churrasco de jumento para incentivar o uso do animal como alimento, o Nordeste ainda tenta resolver o problema de jegues abandonados pelas estradas.
Doações, abate legal, produção de queijo nobre, transporte de bananas, atração turística e até "jegueterapia": não faltam alternativas, mas nenhuma emplacou até agora.
O lombo do jumento perdeu espaço no Nordeste para motos e máquinas agrícolas. A frota de duas rodas no Brasil cresceu quase 600% desde 2003: 1,2 milhão para 6,9 milhões de veículos.
Sem utilidade, o bicho foi sendo abandonado. Passou a circular solto em estradas, agravando o problema dos acidentes na região, que concentra 90% dos asininos (que incluem ainda burros e mulas) do Brasil.
Não há estatísticas precisas sobre acidentes com jumentos no Nordeste. Os dados são organizados como "acidentes com animais", mas a Polícia Rodoviária Federal (PRF) assegura que a maioria envolve asininos.
Somente nas estradas federais que cortam a região houve 8.050 acidentes com animais de 2012 a agosto deste ano, com 1.647 feridos graves e 259 mortes. E desde 2015 foram mais de 27 mil apreensões de animais.
Convênios com prefeituras
Diante da situação, a PRF em alguns Estados busca soluções para ao menos diminuir o número de asnos nas rodovias.
No Maranhão, por exemplo, a polícia e a Aged (Agência Estadual de Defesa Agropecuária) celebraram um convênio no ano passado para que o governo abrigasse animais apreendidos.
De lá para cá, porém, a agência ainda não disponibilizou espaços para receber os bichos.
"Ficamos, assim, 'espremidos' entre dois crimes: a prevaricação, por não retirar os animais das rodovias, e maus tratos aos animais, por não ter condição de abrigá-los de forma apropriada", informou, em nota, a PRF no Maranhão.
A agência diz que o convênio não andou por falta de dinheiro e parceiros, e porque falta aprovar uma lei que permita "a expropriação e doação dos animais a terceiros".
"Não dispomos de recursos financeiros para custear exames necessários e obrigatórios à manutenção desses animais em qualquer propriedade ou mesmo à doação", informou.
Recorrendo a Jesus
Convênios com prefeituras também não deram certo no Rio Grande do Norte. Mas lá jumentos encontram abrigo na fazenda de Jesus, apelido do agricultor Eribaldo Nobre, 52 anos.
Numa fazenda de 500 hectares em Apodi, na divisa com o Ceará, Jesus planta melancia, milho e sorgo e há três anos recebe animais abandonados - a fazenda é sede de uma associação de proteção animal.
Ele cuida de cerca de 400 jumentos, sendo 150 fêmeas, e de mais de cem cachorros e gatos. O local chegou a abrigar 1,2 mil jumentos, mas reduziu o acolhimento por causa da seca que atingiu a região e matou centenas de animais.
"Perdi mais de 700 fêmeas ano passado", disse Jesus, hoje animado com o recente anúncio da instalação, na cidade vizinha de Felipe Guerra , de uma empresa para beneficiamento do leite de jumenta.
O objetivo do negócio é produzir queijo pule, uma iguaria com mercado cativo na Europa e na Ásia, onde o quilo do queijo chega a valer R$ 3.000.
"Estou planejando comprar maquinário para fazer a ordenha e vender meu leite. Mas o que vou fazer com tantos machos, que sustento sozinho?", questiona ele, para quem os machos deveriam ser abatidos - sem sofrimento - para aproveitar carne e couro.
Bacias leiteiras
Quem toca o projeto do queijo pule - o que anima Jesus - são investidores chineses e ingleses.
A empresa Green Building quer criar uma bacia leiteira na região de Felipe Guerra para fornecimento do insumo. "Queremos mudar o pensamento do nordestino, mostrando a eles o valor dos asininos", declarou a firma em nota.
A empresa diz que irá incentivar a criação dos animais e organizar pontos de coleta do leite, com câmaras de resfriamento.
O governo promete apoiar. "Vamos buscar linhas de financiamento e queremos aproveitar fazendas que tiveram problemas de seca nos últimos cinco anos. Muitas estão vazias, e vamos colocar jumentos soltos nas estradas nelas", disse o secretário de Agricultura, Guilherme Saldanha.
Segundo um estudo de 2015 de pesquisadores da Universidade Federal e do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, o leite de jumenta é alimento seguro, similar ao leite humano e com menor teor de gordura.
Churrasco de jumento
Outra possibilidade ligada ao consumo envolve a própria carne do animal.
A solução ganhou fama em 2014, quando o promotor Silvio Brito, que atuava em Apodi (RN), organizou um churrasco com carne do animal para sensibilizar autoridades e imprensa para a alternativa.
A ideia revoltou alguns defensores dos animais, que chegaram a ameaçar o promotor nas redes sociais.
Houve também resistência na cidade - o prefeito teve que ir a uma rádio negar que a carne de jumento fosse ser incluída na merenda escolar.
"O jumento pode fornecer até 100 kg de carne de primeira qualidade, uma peça de couro de alto valor (cerca de R$ 120 a peça) e um leite que pode salvar a vida de milhões de pessoas que sofrem com intolerância à lactose ou deficiência nutricional", diz Brito.
Diretora da ONG Bicho Feliz, que atua no Nordeste, Gislaine Brandão critica o uso de jumentos para consumo da carne, couro ou leite.
"É um animal que vem sofrendo há décadas. Eles devem ser aposentados, livres, sem trabalho. O Estado brasileiro deveria cuidar melhor desses animais", afirma.
Abate controlado
Alegando alto risco de acidentes nas estradas com jumentos, o governo da Bahia anunciou que pretendia abater 2.000 desses animais até outubro deste ano. A carne seria usada para fabricação de ração animal, a ser doada ao zoológico de Salvador.
O Ministério Público, contudo, não viu a solução como "adequada e ética" e recomendou a paralisação dos abates, interrompidos em julho.
A Promotoria diz que 978 animais chegaram a ser abatidos em um frigorífico no interior do Estado que não tinha licença para essa atividade - o local acabou multado em R$ 50 mil pelo órgão ambiental estadual.
A Secretaria de Agricultura do Estado diz que o frigorífico tinha licença quando recebeu autorização para abate e que atua "sem omissão e negligência diante das mortes dos jumentos nas estradas ou nos abates clandestinos".
Outras alternativas
Um estudo de 2014 da comissão de meio ambiente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em Mossoró (RN) concluiu que o consumo da carne de jumento "não tem amparo cultural, comercial e econômico".
Como alternativa para conter o número de animais abandonados, cita a introdução dos bichos em parques ecológicos, em projetos turísticos, reintrodução em atividades rurais e até "jegueterapia", em tratamentos para pessoas com problemas locomotores e psicológicos.
"O jumento, por ser muito dócil e de porte pequeno em relação ao cavalo, vem sendo utilizado em muitas clínicas com resultados positivos", diz a comissão em relatório.
Para uma associação que trabalha com jumentos da raça "pêga", mais presente em Minas Gerais e São Paulo (mas com 6,2 mil animais registrados no Nordeste), o custo de criação do jumento é "muito alto para destinar ao consumo humano de sua carne, pele e leite".
Para que a produção do leite se tornasse viável economicamente, diz a associação, seria preciso investir em melhoramento genético, para aumentar o volume produzido.
"Devido à pouca quantidade de leite produzido pela jumenta, o mesmo é destinado apenas às crias. Contudo, os animais que não tem mais utilidade e representam um problema social poderiam ter essa destinação (abate)."
Numa região na fronteira do Rio Grande do Norte com o Ceará, três empresas agrícolas exportadoras de banana usam há quatro anos o jumento como animal de tração.
Em cada empresa, de 25 a 35 animais ajudam no transporte dos cachos da área de produção até a casa de embalagem, por meio de um sistema chamado "cabo-via", em que frutas são enfileiradas no ar, dependuradas em um fio e puxadas pelo animal com a ajuda de um carrinho.
Muito usado na América Central, o sistema é uma exigência de importadores, para que a fruta não tenha contato com o chão.
Numa dessas empresas, a Agrícola Famosa, de Russas (CE), os animais transportam de 30 a 40 cachos por viagem - são seis viagens por dia.
O técnico agrícola da fazenda, Odirley Fernandes, disse que só não tem mais animais por causa da seca, que tem prejudicado a plantação. "Há dois anos eram 400 hectares de banana, hoje temos pouco mais de 200 hectares."
Enquanto nenhuma alternativa decola de vez, o promotor que com um churrasco trouxe o assunto para a vitrine nacional lamenta a situação.
"Acredito firmemente no potencial econômico do jumento. Causa-me frustração o fato de as demais pessoas não verem isso. Todos os estudos e nossa experiência apontam que o jumento é um animal de qualidades extraordinárias", afirma.