O DIA EM QUE “O CÃO DOS INFERNOS” PASSOU
Por: Rostand Medeiros
Atualmente é inegável e extremamente louvável o esforço da cidade de Mossoró para que a resistência do seu povo ao bando de Lampião em 1927 jamais seja esquecida.
Em uma das praças principais desta cidade encontramos um local de preservação da memória denominado Memorial da Resistência, que através de uma bela exposição temática se encontram belos e interessantes painéis, onde o visitante conhece o esforço que a comunidade realizou para resistir ao maior cangaceiro do Brasil.
O bando de Lampião em Limoeiro do Norte, Ceará, após a derrota em Mossoró.
Mas ao longo dos últimos anos o resgate e a manutenção da memória do ataque dos cangaceiros a Mossoró é tão intenso e forte, que ao se conversar com as pessoas da cidade, com a intenção de se conhecer mais destes fatos têm-se quase a impressão que Lampião e seus homens chegaram à cidade “voando”. A falta de informação sobre o que ocorreu antes ou depois do bando passar pela cidade é tamanha, que algum incauto pode ficar com a sensação que os cangaceiros “saltaram de paraquedas” na Avenida Alberto Maranhão, para depois combaterem e serem fragorosamente derrotados.
Exageros a parte, mesmo existindo no Memorial da Resistência várias informações sobre o que se passou ao longo do trajeto, percebe-se a desinformação.
Mas a culpa não é dos dirigentes e nem muito menos do povo de Mossoró. De forma alguma. Eles fazem a parte deles, que é lembrar o que os defensores da cidade.
Em 2009, em duas oportunidades, tive o privilégio de conhecer e percorrer todo o trajeto originalmente palmilhado pelos cangaceiros no Rio Grande do Norte. Infelizmente pude comprovar que em relação à memória destes fatos, a maioria dos municípios criados a partir do desmembramento dos seis territórios municipais originalmente percorridos por Lampião e seu bando, pouco ou nada fizeram em relação à preservação da memória dos acontecimentos de junho de 1927.
Algumas autoridades municipais nem sequer tem conhecimento que os cangaceiros passaram pela área dos seus municípios. Em outras cidades encontramos quem realmente gostaria de fazer alguma coisa para preservar a memória destes fatos, mas, ou não recebem apoio, ou nada mais resta para mostrar.
Entretanto existem maravilhosas exceções. Municípios onde abnegados secretários de cultura, ou de turismo, com praticamente quase nenhum recurso vindo dos cofres públicos e com muita criatividade, lutam para manter esta memória viva junto as suas comunidades. São poucos, mas são valorosos exemplos de dedicação à história, que realmente comovem aqueles que se interessam pelos acontecimentos do passado no Rio Grande do Norte.
Um dos municípios que mais me chamou a atenção pelos aspectos extremamente interessantes na preservação desta memória foi a pitoresca Lucrécia.
UMA INTERESSANTE ORIGEM NA SUA DENOMINAÇÃO
Antes que alguém possa imaginar que um pomposo dono de terras da região oeste potiguar decidiu colocar como denominação de sua fazenda o nome de “Lucrécia”, para assim honrar a memória da famosa Lucrécia Bórgia, uma rica italiana que viveu no século XV, que se dedicou a ser uma protetora das artes e que devido a suas relações com parentes sem escrúpulos não lhe faltaram inúmeras acusações de delitos e vícios. Pode esquecer, não é nada disso.
Vista atual da cidade de Lucrécia, a 360 km de Natal.
Segundo os moradores da cidade, a Lucrécia em questão era uma senhora negra, que havia sido escrava, que conseguiu sua libertação e era dona de uma gleba na região.
Ao redor do seu sítio foram edificadas as primeiras habitações, onde a vida seguia a passos lentos até a primeira metade da década de 1930. Neste período, nas terras do antigo sítio de Dona Lucrécia, o extinto IFOCS – Instituto Federal de Obras Contra as Secas decidiu represar o Rio Mineiro e o Riacho Pé de Serra, para assim desenvolver uma barragem de 27 milhões de metros cúbicos de água. Verdadeiro fator de desenvolvimento nesta região tão árida, no auge da obra um contingente de 2.500 trabalhadores se dedicaram a construção da barragem e a comunidade foi se desenvolvendo.
Luís da Câmara Cascudo conta no livro Nomes da Terra (1968), nas páginas 204 e 205, que esteve na região em 1934, que a vila possuía energia elétrica, além de “duzentas casas de tijolo e telha e dois mil moradores, lojas e armazéns”.
Igreja Matriz de São Francisco de Assis, no centro de Lucrécia.
Segundo o amigo Rivanildo Alexandrino da Silva, atual Secretário de Cultura da Prefeitura Municipal da vizinha cidade de Frutuoso Gomes, informa que o grande açude foi inaugurado em 1933, mas só veio a sangrar em 1955 e que as más condições dos alojamentos, além da falta de saneamento no acampamento dos trabalhadores, acarretou em um forte surto de cólera.
A emancipação política só ocorreu no dia 27 de dezembro de 1963, através da Lei 3.040, quando Lucrécia se desmembrou da cidade de Martins.
Não sei se cabe e se é verdade, mas o comentário na região é que esta cidade seria a única no Brasil onde a sua denominação tem origem a partir de uma mulher negra e que foi escrava.
Mesmo com a história local sendo pontuados de acontecimentos interessantes, para o povo de Lucrécia à passagem de Lampião pela região figura entre um dos momentos mais significativos do município.
O DIA EM QUE “O CÃO DOS INFERNOS” PASSOU
Quem segue pela rodovia estadual RN-117, a partir da cidade de Olho D’água dos Borges em direção a Umarizal, vai encontrar em um determinado ponto a esquerda um entroncamento onde tem início a RN-072. Estrada com pouco ou quase nenhum acostamento e algumas curvas sinuosas, mas que chama a atenção de quem segue por este caminho pela interessante visão dos contrafortes da grande Serra de Martins.
Distante cerca de 360 quilômetros de Natal, a cidade de Lucrécia continua calma e a vida segue tranquila e devagar para seus mais de 3.600 habitantes.
Mas em 1927 a coisa foi bem diferente.
No dia 11 de junho daquele ano algumas pessoas que seguiam do povoado de Boa Esperança, davam conta aos proprietários rurais que um grande bando de cangaceiros, comandados pelo terrível Lampião, estava vindo pela estrada. As informações eram desencontradas e imprecisas, mas não era necessário muito entendimento para saber que o melhor era sair do caminho desta gente e todos diziam que “Lampião vem aí”.
Ao anoitecer daquele sábado, alguns assombrados retirantes informavam que o bando havia atacado Boa Esperança, provocando muitas desgraças e atingindo várias pessoas. Após deixarem a pequena vila, a turba de saqueadores encourados atacou a propriedade denominada Mombaça, do fazendeiro Frutuoso Gomes.
Através de informações do amigo Rivanildo Alexandrino, no período do ataque havia no lugar no máximo quinze residências. O bando de Lampião invade primeiramente a casa de José Gomes. Na residência de Frutuoso eles interrompem uma novena e em um inusitado gesto de boa vontade, procuram distribuir cortes de fazenda a população local, que foram roubados em Boa Esperança. Mesmo assim ocorreram espancamentos e saques.
Aspecto atual da sede da propriedade Cacimba de Vaca, atacada por Lampião e seus homens, encontrava-se vazia e foi depredada.
Seguem depois para outras propriedades, mas Lampião tem a informação que o melhor está cerca de meia légua para frente e é uma fazenda denominada Cacimba de Vaca. O seu proprietário, Joaquim Dias da Cunha, tido como homem de dinheiro, soube do avanço da tropa de sicários e não perdeu tempo. Pegou seu povo e suas riquezas e tratou de fugir. Esta fuga enraiveceu Lampião e o bando descontou a desdita numa extensa lista de depredações, um incêndio criminoso ao paiol de cereais e de utensílios rurais.
Na atualidade, em relação à residência de Joaquim Dias a mesma foi extensamente reformada, sendo completamente alterada, não deixando, mas nenhuma característica daquele período. Mas até a última reforma era possível, segundo seus atuais moradores, ver as marcas de balas na parte superior da edificação.
Em setembro de 2009 encontramos ainda altivo e extremamente animado e simpático, o agricultor aposentado Glicério Cruz. Vivendo em um antigo grupo escolar com sua família, Seu Glicério não se deixa abater pela precariedade de suas condições e dialoga animadamente sobre Lampião. Para ele, que tinha quatorze anos na época do ataque, Lampião vinha “como o cão dos infernos”, quebrando e destruindo tudo pela frente. Ele e sua família, ao primeiro alarme da presença do bando na região, trataram de se abrigar no alto da Serra de Martins.
NOVOS ATAQUES
Na atual zona urbana de Lucrécia, as margens da RN-072, encontramos uma antiga casa bem preservada e que em setembro de 2009 havia sido recentemente pintada de branco. É a antiga sede da Fazenda Castelo.
Na noite de 11 de junho os bandidos adentraram casas de moradores, simples choupanas, onde o agricultor Raimundo Alves de Oliveira foi ferido a bala e só não passou desta para melhor porque se fingiu de morto. Infelizmente Raimundo carregaria pelo resto da vida um aleijão no braço atingido, decorrente do disparo.
Atual estado da casa da Fazenda Castelo.
Sobre a invasão da residência mais importante da propriedade não existem maiores informações. Inclusive chegamos a suspeitar que esta casa houvesse sido construída após a passagem do bando. Entretanto, ao buscarmos contato com as pessoas mais idosas na cidade, estas informavam não terem dúvidas sobre a antiguidade do lugar e que a mesma pertencia na época a Elias Leite. Esta informação é corroborada na página 73, do livro “Relação dos Proprietários e dos Estabelecimentos Rurais Recenseados no Estado do Rio Grande do Norte em 1920”, que aponta o mesmo lugar como pertencente a Elias da Silva Leite.
Além de sua localização excepcional, o seu estado de conservação é ímpar, sendo considerado um marco histórico por ser uma das residências mais antigas e precursoras da povoação.
Assobradada, com muitos cômodos, a residência se apresenta atualmente sem moradores, mas seus atuais proprietários estão mantendo o local em bom estado de conservação e, segundo os moradores mais idosos com quem tivemos oportunidade de conversar, preservando a originalidade.
No terreno ao lado da sede da fazenda Castelo se encontra uma bem preservada capelinha dedicada a Nossa Senhora da Guia. Já em relação a este local não foi possível saber se a mesma foi construída como uma promessa por alguma graça alcançada diante dos sicários. Um último apontamento informa que o local foi utilizado para a fabricação de uma aguardente chamada “Castelo”.
O SOFRIMENTO DE EGIDIO E DONATILA LEITE
O casal Egídio Dias da Cunha e sua mulher Donatila Leite Dias. Sofrimento nas mãos dos cangaceiros.
Egídio Dias da Cunha, e sua mulher, Donatila Leite Dias eram os proprietários do próximo alvo, a Fazenda Serrota, ou Serrota dos Leites. Egídio soube da presença do bando na região, mas desdenhou do fato. Passava das onze da noite quando sua mulher lhe alertou haver escutado alguns tiros em direção à fazenda Castelo. Novamente o fazendeiro não aproveitou os avisos e não saiu da sua propriedade.
Logo a desgraça, na forma de um bando de cangaceiros fedorentos, batia a sua porta. Para Lampião foi uma satisfação saber que acabava de encontrar um dos filhos de Joaquim Dias, da fazenda Cacimba de Vaca e que agora poderia arrancar algum dinheiro do abastardo genitor de Egídio. Seu resgate foi avaliado em dez contos de réis.
Comentários existentes na região afirmam que a violência dos bandidos foi intensa, principalmente contra Donatila Leite. Móveis foram quebrados, baús foram destruídos, seus conteúdos espalhados. Os homens buscaram na cozinha alimentos e um pote de água foi quebrado na sala. Tudo foi revirado, vários objetos roubados e alimentos foram levados.
Outras duas casas da Serrota, as dos moradores Chagas Manoel e Raimundo de Paula Cosme, foram igualmente invadidas, com surras e saques dos moradores.
UMA PRETENSA RESISTÊNCIACom a saída dos cangaceiros do sítio Serrota e a prisão de Egídio, a notícia se espalha entre vários parentes e amigos. Logo um grupo de moradores da região decide com extrema coragem, sair em busca daqueles que pudessem ajudar a levantar a quantia estipulada por Lampião no povoado de Gavião, atual cidade de Umarizal, para soltar o popular Egídio.
Estrada que, segundo os moradores da região, foi à mesma utilizada pelo bando para chegarem a região do Caboré.
O grupo era pequeno, com um número que aparentemente chega a quatorze e só quatro deles, Bartolomeu Dias, Francisco Canela, João “Bolacha” e Sebastião Trajano, eram os únicos que os pesquisadores do assunto apontam como possuindo rifles. O resto da tropa levava armas curtas, espingardas de soca e facões.
Este grupo conhecia os caminhos, provavelmente confiavam no fato de ser período de lua cheia e que isto facilitaria o trajeto. A frente destes homens seguia Emídio Dias, irmão do sequestrado.
Enquanto se desenrolava esta situação, na região do sítio Caboré, cansados pelo deslocamento, esgotados pelas ações e pelo alto consumo de cachaça, o bando decidiu descansar, próximo ao casebre de um cidadão conhecido como José Alavanca, que atualmente não existe mais.
Por volta das três da manhã o grupo comandado por Emídio Dias chegou a esta casa humilde em busca de informações. O que eles não sabiam era que um cangaceiro, facilitado pelo luar, vigiava os movimentos do grupo.
No local conhecido como “Serrote da Jurema” foi armada uma emboscada pelo bando de experientes combatentes. Logo abriram fogo contra a incipiente tropa. Como resultado Bartolomeu Dias, Francisco Canela e Sebastião Trajano tombaram e o resto fugiu em franca debandada. A vingança do bando de Lampião nos corpos dos amigos de Egídio foi terrível. No outro dia foram transportados em redes para Martins, feitos os exames cadavéricos e enterrados no cemitério local.
Aspecto de Lucrécia na década de 1940
Para melhor entendimento, segue os laudos cadavéricos dos três homens mortos, através de material fornecido pelo pesquisador da cidade de Martins, Junior Marcelino.
AUTO DE EXAME CADAVÉRICO 1
Aos doze dias do mês de junho de 1927, nesta cidade do Martins, na Intendência Municipal, às dezessete horas, presente o Delegado de Polícia Tenente Abílio Campos, comigo Antônio Inocêncio de Oliveira, Escrivão do seu cargo, abaixo nomeados os peritos Emídio Fernandes de Carvalho e José Ignácio de Carvalho Sobrinho, à falta de profissionais, e as testemunhas abaixo assinadas, todas residentes nesta cidade. Aquela autoridade tomou dos mesmos peritos o compromisso formal de bem e fielmente desempenharem a sua missão, declarando com verdade o que descobrirem e encontrarem e o que em suas convicções entenderem e encarregou-lhe que procedessem a exame no cadáver de Bartolomeu Costa Dias e que respondessem aos quesitos: 1º se houve morte; 2º qual o meio que a ocasionou; 3º se foi ocasionada por veneno, substância anestésica, incêndio, asfixia ou inundação; 4º se por sua natureza foi causa eficiente da morte; 5º se a constituição ou estado mórbido anterior do ofendido concorreu para tornar essa lesão irremediavelmente mortal; 6º se a morte resultou das condições personalíssimas do ofendido; 7º se a morte resultou não porque o mal fosse mortal e sim por ter o ofendido deixado de observar o regime médico reclamado pelo seu estado. Em consequência passaram os peritos a fazer os exames e investigações ordenadas e as que julgassem necessárias e concluídas as quais declararam: que examinando o cadáver de Bartolomeu Costa Dias, de vinte anos de idade, cor morena, e encontraram sete ferimentos, sendo dois deles na região palpebral direita e esquerda, dois nas regiões inferiores das pernas, todas produzidas por instrumento perfuro-contundente, dois ferimentos profundos nas regiões abdominais e hipocôndrio direito e outro nas regiões parietais direitos produzidos por projétil de arma de fogo em que responderam ao 1º quesito sim, houve morte; ao 2º por instrumento perfuro-cortante e projétil de arma de fogo; ao 3º negativamente; ao 4º, sim; ao quinto, sexto e sétimo ( 5º, 6º e 7º ) não. E são estas as declarações, que debaixo de compromisso prestado têm a fazer. E por nada mais haver, deu-se por concluído o exame, ordenado e de tudo se lavrou o presente auto que vai por mim escrito, assinado e rubricado pela autoridade, assinado pelos peritos e testemunhas, comigo Antônio Inocêncio de Oliveira, Escrivão, o assinei e assino.
Processo-crime contra Virgulino Ferreira e outros instaurado na Comarca de Martins/RN, 1927, fls. 09/11.
LAUDO DE EXAME CADAVÉRICO 2
Aos doze dias do mês de junho de 1927, nesta cidade do Martins, na Intendência Municipal, às dezessete horas, presente o Delegado de Polícia Tenente Abílio Campos, comigo Antônio Inocêncio de Oliveira, Escrivão do seu cargo, abaixo nomeados os peritos Emídio Fernandes de Carvalho e José Ignácio de Carvalho Sobrinho, à falta de profissionais, e as testemunhas abaixo assinadas, todas residentes nesta cidade. Aquela autoridade tomou dos mesmos peritos o compromisso formal de bem e fielmente desempenharem a sua missão, declarando com verdade o que descobrirem e encontrarem e o que em suas consciências entenderem e encarregou-lhe que procedessem a exame no cadáver no cadáver de Sebastião Trajano e que respondessem aos quesitos: 1º se houve morte; 2º qual o meio que a ocasionou; 3º se foi ocasionada por veneno, substância anestésica, incêndio, asfixia ou inundação; 4º se por sua natureza foi causa eficiente da morte; 5º se a constituição ou estado mórbido anterior do ofendido concorreu para tornar essa lesão irremediavelmente mortal; 6º se a morte resultou das condições personalíssimas do ofendido; 7º se a morte resultou não porque o mal fosse mortal e sim por ter o ofendido deixado de observar o regime médico reclamado pelo seu estado. Em conseqüência passaram os peritos a fazer os exames e investigações ordenadas e as que julgassem necessárias e concluídas as quais declararam: que examinando o cadáver de Sebastião Trajano, de trinta anos de idade, de cor morena, encontramos um ferimento na região torácica interna (lado esquerdo) atingindo o coração, produzido por projétil de arma de fogo, e que, portanto, responderam ao 1º quesito sim, houve morte; ao 2º arma de fogo; ao 3º negativamente; ao 4º, sim; ao 5º, 6º e 7º, não. E são estas as declarações, que debaixo de compromisso prestado têm a fazer. E por nada mais haver, deu-se por concluído o exame, ordenado e de tudo se lavrou o presente auto que vai por mim escrito, assinado e rubricado pela autoridade, assinado pelos peritos e testemunhas, comigo Antônio Inocêncio de Oliveira, Escrivão, o assinei e assino.
Processo-crime contra Virgulino Ferreira e outros instaurado na Comarca de Martins/RN, 1927, fls. 11/13.
LAUDO DE EXAME CADAVÉRICO 3
Aos doze dias do mês de junho de 1927, nesta cidade do Martins, na Intendência Municipal, às dezessete horas, presente o Delegado de Polícia Tenente Abílio Campos, comigo Antônio Inocêncio de Oliveira, Escrivão do seu cargo, abaixo nomeados os peritos Emídio Fernandes de Carvalho e José Ignácio de Carvalho Sobrinho, à falta de profissionais, e as testemunhas abaixo assinadas, todas residentes nesta cidade. Aquela autoridade tomou dos mesmos peritos o compromisso formal de bem e fielmente desempenharem a sua missão, declarando com verdade o que descobrirem e encontrarem e o que em suas consciências entenderem e encarregou-lhe que procedessem a exame no cadáver no cadáver de Francisco Canela e que respondessem aos quesitos: 1º se houve morte; 2º qual o meio que a ocasionou; 3º se foi ocasionada por veneno, substância anestésica, incêndio, asfixia ou inundação; 4º se por sua natureza foi causa eficiente da morte; 5º se a constituição ou estado mórbido anterior do ofendido concorreu para tornar essa lesão irremediavelmente mortal; 6º se a morte resultou das condições personalíssimas do ofendido; 7º se a morte resultou não porque o mal fosse mortal e sim por ter o ofendido deixado de observar o regime médico reclamado pelo seu estado.
Em consequência passaram os peritos a fazer os exames e investigações ordenadas e as que julgassem necessárias e concluídas as quais declararam: que examinando o cadáver de Francisco Canela, de quarenta anos de idade, cor morena, encontraram três ferimentos, sendo um na região nasal produzido por faca de ponta, dois na região torácica lateral direita e esquerda, produzidas por um projétil de arma de fogo, e que, portanto, responderam ao 1º quesito sim, houve morte; ao 2º por instrumento perfuro-cortante e projétil de arma de fogo; ao 3º negativamente; ao 4º, sim; ao 5º, 6º e 7º, não. E são estas as declarações, que debaixo de compromisso prestado têm a fazer. E por nada mais haver, deu-se por concluído o exame, ordenado e de tudo se lavrou o presente auto que vai por mim escrito, assinado e rubricado pela autoridade, assinado pelos peritos e testemunhas, comigo Antônio Inocêncio de Oliveira, Escrivão, o assinei e assino.
Processo-crime contra Virgulino Ferreira e outros instaurado na Comarca de Martins/RN, 1927, fls. 13/15.
Apesar de todo empenho em buscar ajudar o amigo Egídio, o que o grupo não sabia era que a sua ação era inútil. Algum tempo antes, no bivaque armado pelos bandidos, em meio ao cansaço generalizado da tropa de Lampião, o sequestrado Egídio conseguiu fugir para o meio do mato.
MEMÓRIAS DE UMA NOITE DE TERROR
Seguramente Lucrécia é um dos locais onde a memória da jornada de Lampião pelo Rio Grande do Norte é mais trabalhada.
Especificamente em relação as propriedade Cacimba de Vaca e Castelo, apesar da comprovação da passagem do bando por estes locais, este fato não é muito comentado e nem tão lembrado como é nos sítios Serrota e Caboré.
Foto do açude Lucrécia vinte anos após a passagem do bando de Lampião pela região.
Segundo os membros da família Leite, que até hoje habitam a tradicional propriedade, a velha casa onde padeceram Egídio e Donatila é sempre visitada por pessoas que desejam conhecer mais da passagem do bando pela região.
Para a família Leite estas visitas ocorrem pelo fato da proximidade da sua região com a cidade turística de Martins. Os guias de turismo apontam a região próxima ao sítio Serrota como um interessante local para visitação. Além dos fatos históricos e a proximidade com Martins, existe outro fator para ocorrer esta situação, a preservada casa de Egídio está distante apenas 300 metros da RN-072 e a família Leite se desdobra em atenção para aqueles que desejam conhecer estes fatos.
A própria comunidade de Lucrécia ofertou a família uma placa onde o dístico é bastante claro sobre a maneira como as pessoas da região definem as figuras de Egídio e Donatila, “heróis”. Inclusive esta foi a palavra mais utilizada pelas pessoas da região ao comentarem sobre o caso. A família Leite apresenta esta placa com extremo orgulho.
Ainda em relação à Donatila Leite, busquei dialogar diretamente com a família, que não fez nenhuma restrição às dúvidas que tinha, em relação a uma informação delicada e negativa.
Donatila e Egídio na Serrota. Tranquilidade junto aos familiares.
Segundo várias pessoas que entrevistei nas cidades de Antônio Martins, Martins e Lucrécia, Donatila teria sido sumariamente violentada por vários membros do bando, inclusive o próprio Lampião.
Tida como uma mulher bonita na sua juventude, este pretenso estupro coletivo ocorreu devido à raiva do chefe cangaceiro diante da fuga do pai de Egídio, o fazendeiro Joaquim Dias da Cunha da sua propriedade Cacimba de Vaca. O ato abominável e covarde teria sido realizado diante do marido, que foi obrigado a ver as cenas terríveis.
Existem variadas versões que comprovariam o fato. A mais corrente informa que no outro dia após o ataque, Donatila teria subido a serra transportada em uma rede, seguido para a cidade de Martins para se tratar com o único médico existente na região. O seu estado era deplorável e a mesma ficou em situação delicada por um tempo superior a dez dias.
Para a família é tudo invencionice. Realmente Donatila subiu para Martins em uma rede, mas foi por fatores mais do que lógicos diante de tão terrível situação. Ela foi ficar junto do marido, que seguiu para esta cidade com o intuito de se recuperar da verdadeira “surra” de espinhos que levou ao fugir do bando na madrugada. Certamente que Egídio não poderia deixar de participar do sepultamento dos três amigos que morreram tentando salvar a sua vida, além de prestar esclarecimentos às autoridades. O fato de Donatila subir a serra de Martins em uma rede se devia ao seu abalado estado psicológico, sendo esta prática de transportar enfermos para o alto da serra, uma situação comum no passado.
Para mostrar quanto nada disto era verdade, a própria família Leite me deixou reproduzir a fotografia anterior, onde vemos Egídio e Donatila na década de 1940 ou 1950, em meio a muitos familiares, vivendo na mesma casa do sítio Serrota.
Mesmos para aqueles que afirmaram ter Donatila Leite sido sucessivamente sido violentada por vários cangaceiros, são unânimes em apontar que ela viveu tranquila, sem rancores em relação ao possível fato e era tida como uma ótima pessoa. Para a família esta é mais uma prova que nada relativo ao que se comenta realmente ocorreu. Para eles, se Donatila tivesse sofrido a terrível violência sexual que muitos afirmam, em uma época “onde tudo era atrasado e difícil”, ela não teria sido uma mulher que viveu de forma feliz e tranquila.
A LEMBRANÇA DOS TRÊS HERÓIS
Monumento da “Cruz dos três Heróis”.
Se Donatila Leite conseguiu viver, os três amigos de seu marido não tiveram a mesma sorte. Mas igualmente não foram esquecidos pela comunidade.
Ao realizar o trabalho de pesquisa na região, ficou patente que a morte de Bartolomeu Dias, Francisco Canela e Sebastião Trajano é um dos fatos mais conhecidos e mencionados por pessoas de diversas idades, relativas a passagem do bando de Lampião.
Autores afirmam que o grupo de homens que seguiu do Sítio Serrota, não desejavam o enfrentamento com os cangaceiros e nem resgatar Egídio Dias em um primeiro momento. A intenção deste grupo era o de autoproteção, para assim seguirem até a povoação de Gavião e de lá trazerem o valor do resgate do fazendeiro. Entretanto para todas as pessoas com quem dialoguei, estes são categóricos em afirmar que a intenção destes homens era “salvar Egídio”, ou assim foi como ficou preservada em suas memórias.
Placa alusiva ao episódio.
Das cidades de Antônio Martins a Felipe Guerra, em inúmeros locais, ouvi vários comentários elogiosos a valentia, a intenção destemida e magnânima destes homens em salvar um amigo. Isso tudo diante do bando do maior cangaceiro que o Brasil já viu. Um inimigo experiente, mais forte em número de armas e de combatentes. Para o povo da região, estes três homens são heróis.
As margens da rodovia estadual RN-072, na comunidade Caboré, se encontra um marco, conhecido como “A cruz dos três heróis”, aonde o povo de Lucrécia e da região vêm àqueles que agora são conhecidos apenas como “Os Canelas”, ou os “Heróis de Caboré”.
Apesar do empenho do povo de Lucrécia em manter viva a memória do sacrifício destes três homens, o local onde a cruz se encontra é perigoso para aqueles que desejam parar algum veículo, com a intenção de fotografar o monumento. Este fato ocorre devido à inexistência de um acostamento as margens da pista de asfalto, ou de uma área apropriada para estacionamentos. Outra dificuldade para o pretenso visitante é a falta de uma placa de sinalização posicionada antes do monumento, nos dois sentidos da estrada.
A inexistência desta indicação mostra para muitos motoristas que aquele monumento mais parece destinado a homenagear pessoas que morreram em algum acidente automobilístico e não em um combate contra o bando de Lampião.
Se o visitante não tiver cuidado, é provável que a próxima cruz na beira da estrada seja a dele.
UMA PEÇA DE TEATRO MARCA A MEMÓRIA LOCAL
O autor junto ao grupo de teatro “Tribo da Terra”.
Finalizando, encontramos neste município uma das poucas expressões teatrais que trata do tema ligado a passagem de Lampião e seu grupo, encontrada em todo o trajeto percorrido.
Atualmente o sítio Caboré é uma comunidade rural em expansão, neste local atua uma organização denominada Grupo Juventude Unida de Caboré, que surgiu há 17 anos com o intuito de mobilizar os jovens da localidade em torno de atividades sociais diversas. Uma destas atividades é voltada para a participação no desenvolvimento da cultura local, utilizando principalmente o teatro como ferramenta e meio de expressão. Em 2006, com o apoio da Fundação Laura Vicunha, sete integrantes do Grupo Juventude Unida de Caboré participaram de uma oficina teatral ministrada pela Universidade Católica de Brasília e deste aprendizado surgiu o grupo de teatro denominado “Tribo da Terra”.
Esta trupe foca sua atuação em diversas temáticas voltadas na própria realidade da comunidade, dentre estes os fatos que envolveram a sua história. Neste sentido, o grupo desenvolveu uma peça teatral denominada “Na boca do povo e das almas”, onde trata exclusivamente dos trágicos episódios vividos em junho de 1927. A peça é dividida em três atos, onde o público conhece a história da comunidade na época da passagem do bando, as ações dos cangaceiros e a reação da comunidade enaltecendo a ação dos “Heróis de Caboré”.
Não tivemos a oportunidade de assistir esta peça, mas foi possível em um momento de diálogo com este grupo de teatro, liderados pela estudante de pedagogia Adriane Maia Dias conhecer mais desta iniciativa interessante. Os ensaios do grupo ocorrem na ADCRC – Associação de Desenvolvimento Comunitário de Caboré.