Um químico afirma ter encontrado a cura do câncer, mesmo sem ter provas. E sugere aos pacientes que larguem outros tratamentos
MARCELA BUSCATO, DE SÃO CARLOS, E ANA HELENA RODRIGUES. COM ARIANE FREITAS
17/10/2015 - 00h11 - Atualizado 22/12/2015 17h05
O administrador de empresas Oswaldo Luiz Silva Neto, de 61 anos, mora a dois quarteirões do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, na capital paulista, uma referência no tratamento da doença. Mas viajou 240 quilômetros, em direção a São Carlos, no interior do Estado, para buscar ajuda. Desde que descobriu um tumor de 3,8 centímetros no esôfago, no fim de setembro, Silva Neto vasculha a internet em busca de informações sobre a doença. Encontrou notícias e grupos em redes sociais a respeito de uma substância que tem o poder, segundo seus defensores, de fazer tumores regredirem. Alguns a apelidaram de “fosfo” (mais fácil de dizer que fosfoetanolamina sintética).
Ela é fabricada num laboratório do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) no campus de São Carlos, para onde Silva Neto viajou na quinta-feira passada. Seu médico, na capital, recomendou cirurgia. Com sorte, pode bastar para livrá-lo da doença, já que o tumor não se espalhou. Depois de ler relatos quase milagrosos de gente com câncer terminal que vive anos à base da fosfo, Silva Neto decidiu tentar a sorte. “Quero tomar esse remédio e evitar uma cirurgia. Enquanto espero marcarem a operação, vou tomando. Se o tumor regredir, posso optar por não fazê-la”, diz. O médico dele, sua irmã, que é médica, e a mulher, também da área da saúde, não sabiam de sua viagem a São Carlos. Ele sabe que a decisão é controversa.
A fábrica improvisada das cápsulas azuis e brancas, que se tornaram famosas no boca a boca, fica no pequeno laboratório do Grupo de Química Analítica e Tecnologia de Polímeros. Um único funcionário da USP é encarregado de produzi-las. No início dos anos 1990, a fosfo despertou a atenção do então coordenador do laboratório, o químico paulista Gilberto Orivaldo Chierice, de 72 anos, hoje professor aposentado. “Acho que é uma cura para o câncer”, diz Chierice, descascando o fumo de corda que usaria no cigarro que segurou durante toda a entrevista a ÉPOCA.
POLÊMICO
O químico Gilberto Chierice no laboratório de sua empresa. Ele diz ter descoberto a cura do câncer (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Seria uma notícia extraordinária, não houvesse um grande problema. A substância nunca passou das etapas mais básicas de pesquisa: alguns estudos feitos com camundongos e células humanas, cultivadas em placas de laboratório e transferidas para roedores. São estágios muito iniciais de avaliação, insuficientes para assegurar sua eficácia e afastar possíveis riscos à saúde (leia o quadro abaixo). Em 1996, o Instituto de Química firmou um convênio com o Hospital Amaral Carvalho, em Jaú, para estudar “novas moléculas para disfunções celulares”. Mas o hospital não tem registro de estudo com a fosfo. Nunca foram feitos testes clínicos da substância, em um grande número de pacientes, sob o controle de médicos e pesquisadores. Testes assim são fundamentais e exigidos por leis para que um composto seja considerado medicamento. É um padrão internacional. A fosfo não tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária nem pode ser distribuída ou vendida como remédio no Brasil. Mesmo assim, por razões que a USP não explica, a fosfo era distribuída abertamente, há mais de 20 anos, às portas do Instituto de Química em São Carlos, para pacientes em busca da “cura” do câncer. “Não estamos autorizados a falar sobre isso”, diz Helena Ferrari, assistente de direção da unidade. Questionada pela reportagem, a reitoria da USP não tinha explicação para o ocorrido, até a tarde de sexta-feira. Em uma nota, a USP concorda que a fosfo não é um medicamento reconhecido e afirma estar verificando “o possível envolvimento de docentes ou funcionários na difusão desse tipo de informação incorreta”.
O caminho de um remédio (Foto: Revista ÉPOCA/Reprodução)
Na semana passada, Helena e o vice-diretor do Instituto de Química, Éder Cavalheiro, tentavam controlar, sob as vistas da Polícia Militar, cerca de 20 pessoas que se aglomeravam na frente do Instituto em busca das cápsulas. Vários vinham de outros Estados, como Paraná e Minas Gerais. A procura aumentou desde que a história ganhou destaque no noticiário, na semana passada. A distribuição, que estava proibida pela universidade desde junho de 2014, foi liberada provisoriamente (até julgamento) por uma decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal.
A decisão, de 6 de outubro, abre a possibilidade de pacientes de câncer terem direito de acesso à fosfo. Centenas já haviam requerido acesso, negado, pelo desembargador José Renato Nalini, no Tribunal de Justiça de São Paulo. O argumento era factual: “Não há nenhuma prova de que, em humanos, a substância reclamada, que não é um remédio, produza algum efeito no combate a doenças”. Desde o dia 6, pacientes que exigem a substância da universidade conseguem esse direito. “Dá para entender o que passa na cabeça do juiz numa hora dessas”, diz Fernando Aith, professor da Faculdade de Medicina da USP. “É o entendimento de que as pessoas merecem manter o direito à esperança.”
Tal esperança é alimentada por relatos de cura nas redes sociais. O debate guarda semelhança com uma crença religiosa. É compreensível, diante do medo causado por um diagnóstico de câncer. Nos casos em que os médicos informam que nada mais podem fazer, é natural que o paciente procure qualquer opção. A Sociedade Americana de Oncologia Clínica estima que 80% dos pacientes recorrem a um tratamento alternativo. O risco é quando pessoas com boas chances de recuperação abrem mão do tratamento-padrão para se arriscar em terapias não comprovadas. O paciente perde um tempo precioso de tratamento. E, nos grupos de discussão na internet, é disseminada a ideia de que a substância deve ser usada sozinha, não junto com tratamentos tradicionais, como a quimioterapia.
ESPERANÇA
O administrador Oswaldo Luiz Silva Neto, de 61 anos. Ele espera que a fosfo livre-o de uma cirurgia (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Chierice, o “pai” da fosfo, confirma essa orientação perigosa. “Em pacientes em quimioterapia não funciona porque o sistema de defesa do corpo deve estar fortalecido”, diz, sem ter nenhum estudo publicado que comprove a afirmação. Pesquisadores que publicaram estudos com Chierice discordam. O especialista em imunologia Durvanei Maria, do Instituto Butantan, testou a fosfo em animais e células humanas. Confia no potencial da substância como medicamento. Mas não recomenda seu uso antes que testes sejam feitos, nem acha que ela, caso vire remédio, deva substituir a quimioterapia.
"A abordagem de Chierice é de um milagreiro”, afirma o jornalista Alceu Castilho, de 45 anos. O pai dele morreu de câncer, em 2009, dois meses depois de descobrir a doença. Como o câncer estava em estágio avançado, os médicos haviam sugerido apenas cuidados paliativos, para dar conforto. O pai de Castilho quis tentar as cápsulas e recusou qualquer outro tipo de intervenção. “Ele teve um final de vida com muita dor”, diz Castilho. “Esse irresponsável está jogando com a esperança e a vida das pessoas.”
DÚVIDA
A analista fiscal Katia Pompilio, de 43 anos. Ela cogita parar a quimioterapia para usar a substância da USP (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Se a crença no poder de cura da fosfo é quase uma religião, Chierice é Deus para seus defensores. Ressalvas à falta de estudos da substância são tomadas como uma tentativa da “indústria” de esconder da população a descoberta da cura do câncer. Chierice é tratado como um abnegado e injustiçado. Filho de um fazendeiro de Rincão, São Paulo, estudou química na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara. Fez mestrado e doutorado na mesma área, na USP. Nos anos 1970, virou professor da instituição em São Carlos. Agora aposentado, é dono de uma fábrica de impermeabilizante e de uma empresa que faz enxertos ósseos com um polímero, ambos produtos criados por ele. “Sempre quis ser médico”, diz Chierice. “Quando era criança, via aquela pessoa de avental para cá e para lá, pesquisando, e achava que todo pesquisador tinha de ser médico.” Chierice, a seu modo, nunca deixou a medicina de lado. E entende a gravidade do que faz. “Eu sabia que estava interferindo em recomendações médicas. Sempre pensei que, mais cedo ou mais tarde, seria preso por exercício ilegal da medicina”, afirma. “Mas, se eu não distribuir o remédio, quem pensaria nos cancerosos?”
A analista fiscal Katia Pompilio, de 43 anos, dirigiu mais de 200 quilômetros, na quinta-feira, de Osasco, onde mora, até São Carlos, com uma liminar da Justiça. Estava autorizada a pegar as cápsulas. Mas não conseguiu. Haviam acabado. Há um ano, Katia trata de um câncer de mama, seguindo o roteiro reconhecido: cirurgia, químio e radioterapia. Agora, considera parar o tratamento para tentar a fosfo. “Conheço casos de pessoas que pararam, tomaram a fosfo e melhoraram”, diz Katia. Ela considera a possibilidade de tentar a químio e a fosfo juntas. “O que você faria?”, diz, com lágrimas nos olhos.
Chierice conheceu a fosfo quando pesquisava substâncias que servissem para apontar o mineral cálcio nas soluções do laboratório. Leu estudos internacionais que mostravam a presença marcante de fosfo em células cancerígenas. Ficou intrigado e aventou a hipótese de a substância, produzida naturalmente pelo corpo, fazer parte de um sistema de defesa anticâncer do organismo. Em parceria com outros cientistas, publicou alguns estudos básicos, mas diz não ter conseguido despertar interesse de instituições capacitadas para fazer testes. “É preciso ter evidências e estudos adequados para comprovar para a comunidade científica e para o comitê de ética das instituições que você está lidando com algo relevante”, diz a farmacêutica Vilma Regina Martins, superintendente de pesquisa do hospital A.C. Camargo, em São Paulo. “Há milhares de substâncias que inibem a proliferação das células cancerígenas, mas 90% caem por terra (durante os testes clínicos).”
BUSCA Pacientes e familiares na USP em São Carlos, à espera das cápsulas de fosfo. Na quinta-feira, dia 15, logo de manhã, as cápsulas haviam acabado (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Pesquisadores que trabalharam com Chierice não questionam seu caráter. Mas também reconhecem que os estudos são insuficientes. “O professor Gilberto é uma pessoa maravilhosa. Está pensando nos pacientes. Mas são necessários mais estudos”, diz o farmacêutico Adilson Kleber Ferreira. Ele pesquisou a ação anticâncer da fosfo no Butantan, com animais. “Existem milhares de outras substâncias em teste, com resultados tão bons ou melhores.”
Na quarta-feira, dia 14, Chierice foi homenageado na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, com uma medalha. Viajou a convite do deputado estadual Marlon Santos (PDT-RS), que defende a fabricação da fosfo por uma empresa do governo gaúcho. O deputado é um médium e foi preso em 1998, por exercício ilegal da medicina, ao realizar cirurgias espirituais.
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