terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Oswaldo Cruz, o homem que venceu o ‘Aedes’


Sanitarista enfrentou indignação popular até erradicar epidemia de febre amarela


 Partida de uma turma do Departamento de Saúde Pública para isolamento de pacientes: cidade foi dividida em distritos sanitários e recebeu delegacias especiais para contabilizar a população contaminada - ACERVO DA CASA DE OSWALDO CRUZ

RIO— Fábrica de moléstias, túmulo de estrangeiros. No início do século XX, o Rio andava mal de saúde. Os jornais estrangeiros mostravam como a antiga capital do Império capengava para uma República autoritária, economicamente instável e, principalmente, incapaz de conter uma velha chaga — a falta de higiene. A febre amarela, a varíola e a peste bubônica encontravam terreno livre para se proliferar entre os cortiços amontoados próximo à zona portuária. A cidade só começou a melhorar quando, em 1903, o governo federal deu carta branca para o sanitarista Oswaldo Cruz varrer os focos das doenças. Ele tirou da cartola modos controversos para erradicar os males cariocas. Muitos não se encaixam no Brasil atual, acometido pelo vírus zika, mas a maior lição deveria ter sido aplicada há tempos: não há mal que dure quando seu vilão — o mesmo de sempre, o mosquito Aedes aegypti — é combatido sistematicamente, e não apenas nos momentos mais graves.

À frente do Departamento Nacional de Saúde Pública, Oswaldo Cruz criou brigadas à moda militar para invadir casas, levou vacinadores para as ruas e incitou a população a capturar ratos. Em 1904, logo depois de assumir a direção do órgão, enfrentou uma revolta popular e a chacota de intelectuais e da imprensa. Mesmo com a legião dos resistentes, o sanitarista conseguiu erradicar a forma epidêmica da febre amarela em quatro anos. Ganhou medalha de ouro em uma feira internacional e voltou ao país reconhecido como herói. Não demorou, no entanto, para que o descuido resultasse em um novo surto da doença. Em menos de duas décadas, o Aedes levou o Rio de volta para o hospital. E outras epidemias ocorreram desde então.

É claro que existe uma responsabilidade pessoal e a população deve ser conscientizada, mas hoje o Estado deveria ser mais presente.

BRIGADAS CONTRA CORTIÇOS

O sanitarista dividiu a cidade em dez distritos e criou “brigadas mata-mosquitos”. Seus funcionários identificavam os locais insalubres e julgavam se deveriam ser reformados ou demolidos. Cobriam as construções com panos para fumigar venenos. Limpavam calhas e todos os locais que poderiam servir como criadouros de mosquitos. Os moradores infectados eram internados em hospitais — a não ser os ricos, que podiam ser tratados em casa.

— As brigadas de Oswaldo Cruz e a reforma urbana do prefeito Pereira Passos no Centro da cidade empurraram a população para os morros e as áreas mais periféricas — conta Ana Luce. — Além dos “mata-mosquitos”, que combatiam a febre amarela, outros funcionários de saúde pública andavam pela cidade para aplicar a vacina obrigatória contra a varíola.

O arquiteto e historiador Nireu Cavalcanti ressalta como as medidas determinadas pelo governo também podiam atingir o bolso dos cariocas.

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— O Estado exigia que a população limpasse as fossas. Isso provocava um grande custo aos moradores de cortiços, principalmente em um período de crise econômica — assinala. — O autoritarismo das brigadas de Oswaldo Cruz indignava as pessoas. Desde a primeira Constituição brasileira, em 1824, a casa sempre foi considerada um local inviolável, a não ser em momentos de guerra ou Estado de sítio. A campanha de higienização não se enquadrava nestes quesitos. Isso jamais poderia acontecer hoje.

Historiadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, Isabel Lustosa lembra de outro papel dos projetos governamentais. Além de erradicar as doenças da cidade, era importante varrer os miseráveis do Centro da cidade.

— A população negra e pobre não podia ser vista pelos estrangeiros — conta. — A erradicação dos mata-mosquitos e o bota-abaixo de Pereira Passos faziam parte do conceito de civilização. O Rio deveria perder sua cara africana e tornar-se mais arejado e europeu.

A prevenção obrigatória contra a varíola foi o estopim de uma rebelião contra o trabalho de Oswaldo Cruz. Casas eram invadidas e demolidas por causa do Aedes, e as mulheres queixavam-se de ter que mostrar o braço para os vacinadores da varíola, um atentado à moral da época.

— O ápice da resistência foi a Revolta da Vacina, em 1904, em uma semana onde houve até tentativa de golpe — destaca a historiadora Ana Luce Girão. — A Escola Militar se sublevou, os intelectuais criaram uma liga contra a vacina obrigatória. Houve pessoas deportadas para o Acre. A obrigatoriedade da vacina foi revogada, mas quatro anos depois os cariocas recorreram a esta forma de prevenção, quando houve um novo surto de varíola.

O terceiro front de Oswaldo Cruz era o combate à peste bubônica, uma doença transmitida pela pulga dos ratos que infestavam o porto do Rio. O sanitarista incentivou a população a entregar roedores ao seu instituto em Manguinhos. Pagava um preço irrisório, mas o suficiente para que diversas pessoas começassem a criar os animais para depois vendê-los.

A estratégia foi tema da marchinha “Rato rato”, no carnaval de 1904. A finalidade capitalista fica clara nos versos finais da música: “Rato velho como tu faz horror / Não valerá teu qui-qui / Morrerás e não terás quem chore por ti / Vou provar-te que sou mau / Meu tostão é garantido / Não te solto nem a pau”.

Oswaldo Cruz era retratado com deboche na imprensa como o general da saúde, o “último mártir da ciência”. Ele só conquistou o respeito da opinião pública a partir de 1906, quando a epidemia de febre amarela começou a ser contornada.

— Com o gradual desaparecimento da epidemia, foi reduzida a resistência a ele — diz Ana Luce. — Nos primeiros anos de sua gestão, ele aparecia nas revistas como um cruzado, um general com pessoas ajoelhadas aos seus pés. Com o sucesso de seus projetos, ele passou a aparecer mais risonho nas ilustrações.E


O divisor de águas foi uma exposição sobre higiene e demografia em Berlim, em 1907. Oswaldo Cruz impressionou seus colegas estrangeiros ao apresentar os projetos que realizou no Rio.

Ana Luce concorda que as práticas de Oswaldo Cruz jamais poderiam ser aplicadas no Rio do século XXI, mas contesta seu julgamento como uma pessoa autoritária. O controverso dominador do Aedes, vilão e idolatrado, mostrou-se um personagem mais complexo do que o conhecido há mais de um século pelos cariocas.

— Ele tinha que assumir aquele trabalho. Não havia como dizer à população que ela estava doente e deveria sair de casa e aceitar sua demolição — avalia. — Não podemos julgar Oswaldo Cruz aos olhos de hoje. Era um homem pragmático, muito bem relacionado com os cientistas e autoridades, que se reportava diretamente ao presidente. E, na correspondência com a família, era muito afável.

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