HÁ CEM ANOS TINHA LUGAR A SECA DE 15, TIDA COMO UMA DAS PIORES ESTIAGENS DA
HISTÓRIA DO NORDESTE, PARTICULARMENTE DO CEARÁ, ONDE O FENÔMENO SE PROJETOU COM
MAIOR INTENSIDADE, ASSUMINDO PROPORÇÕES ASSAZ ATERRADORAS.
A seca de 1915, que inspiraria obras de vulto, como o romance “O Quinze”, da
cearense Raquel de Queiroz, eclodiu no momento em que o nordeste ainda tentava
se recuperar dos danos provocados pelas terríveis secas de 1877/79 e 1900,
quando aproximadamente metade da população nordestina ou morrera de fome ou
migrara para outras regiões do país, em especial para Amazônia, de onde nunca
mais haveria de voltar.
Sem qualquer ação governamental que oferecesse condições infraestruturais de
combate aos efeitos catastróficos das estiagens prolongadas, como ocorre ainda
hoje, transcorrido já um século, a seca de 15 devastou grande parte do nordeste
brasileiro, afetando drasticamente a economia regional e levando à morte
milhares de seres humanos, entre homens, mulheres e crianças.
Na falta dos recursos mais elementares, as pessoas ingeriam o que estivesse
ao seu alcance, como raízes, brós, beldroegas, mucunãs, insetos, ervas daninhas,
e até mesmo animais infectados. Diante da necessidade extrema, valia a lei da
sobrevivência, não importando ao faminto a qualidade do que era consumido.
Doenças relacionadas a esse tipo de calamidade logo começaram a se alastrar
pela região, matando, sem piedade, principalmente velhos, crianças e pessoas
debilitadas. Dentre tais moléstias, avultavam a varíola, o sarampo e a
disenteria, além de uma série de outras enfermidades provocadas pela ingestão de
água e alimento de péssima qualidade, como a enterite e a gastrenterite.
O escritor e humanista Rodolfo Teófilo, velho conhecedor do drama nordestino,
assim descrevia os horrores da seca: “uma desgraçada mãe, só ossos e pelancas,
morta no meio da estrada, no seio uma criancinha esquelética procurando sugar
algumas gotas de leite do cadáver; um retirante animalizado, metido numa gruta,
alimentando-se da carniça humana que encontrava nos caminhos; uma criança
encontrada numa casa abandonada à beira do caminho, fechada na camarinha, caída
de fome e chupada de morcegos, que lhe cobriam o corpo como um lençol negro; um
desgraçado retirante estirado na estrada, no marasmo da fome, sem forças para
mover um músculo, cercado de urubus vorazes e famintos, que não esperam a morte
da vítima, mas a apressam, vazando-lhe os olhos com o bico adunco...”.
Ao invés de adotar iniciativas que atendessem o sertanejo no seu torrão de
origem, evitando seu deslocamento para outras paragens, o governo, no caso
específico do Ceará, optou por encerrar os flagelados em um “campo de
concentração”, nos arredores de Fortaleza, onde mais facilmente poderia
distribuir suas migalhas. Encurralados e reduzidos à condição de animais,
aqueles homens e mulheres tornavam-se cada vez mais vulneráveis, perecendo aos
centos, aos milhares, em consequência das inúmeras enfermidades, que por lá
grassavam a todo instante.
Era nessas circunstâncias que, a cada dia, levas inteiras de retirantes
cruzavam o nordeste brasileiro, na busca ilusória de melhores condições. Em “O
Quinze”, Raquel de Queiroz põe em cena a saga de Chico Bento que, após abandonar
terra e criatório no interior do Ceará, parte com a família em direção ao
litoral, na esperança de dias melhores.
Ao longo da árdua e tormentosa jornada, dita família de migrantes
experimentará todos os rigores da estiagem, a ponto de presenciar a morte, em
virtude da fome, do primogênito Josias. Cada vez mais mergulhados na trágica e
brutal realidade da seca, e desfeitas as esperanças de uma vida melhor, distante
das agruras vivenciadas no torrão de origem, também eles acabam esbarrando no
famigerado “campo de concentração”, que se converteria mais tarde em “campo
santo”, na palavra balizada de Rodolfo Teófilo.
Passado um século, desde aquele doloroso flagelo que se abateu sobre o
nordeste do Brasil, pouquíssima coisa se fez no sentindo de combater ou, pelo
menos, minimizar os efeitos nocivos da seca (visto ser esta condição intrínseca
à conformação climática do nordeste e, portanto, inevitável).
Depois de 15, o nordeste voltaria a experimentar outros longos e severos
períodos de seca, como os que se registraram nos anos trinta, setenta e oitenta
do século passado. Os governos, no entanto, mantiveram-se indiferentes, pouco
fazendo para enfrentar a questão. Neste momento em que áreas inteiras (tanto do
nordeste como do sudeste) estão sendo afetadas pela falta de água e seus efeitos
deletérios, quase nada vem sendo feito para solucionar o problema. Em lugar de
investir em modelos inovadores de convívio com a escassez de chuvas, utilizando
o próprio potencial do nordeste, o poder público teima em manter os velhos e
superados expedientes, que, de há muito, contribuem para o atraso do nordeste.
Ocorre que as secas representam um negócio altamente lucrativo, havendo
quem delas obtenha vantagens e privilégios. A cesta básica e o carro-pipa,
irmãos siameses das estiagens, são usados sistematicamente para fins
eleitoreiros, alimentando a dependência econômica e alargando o círculo vicioso
da miséria. É a chamada “indústria da seca” que vive e se abastece à custa da
dor e do sofrimento das pessoas menos aquinhoadas.
Urge – nunca é demais repetir – que se adotem medidas, não de combate à
seca, como se propôs por longo tempo, e sim de convivência com a mesma.
Para tanto, é necessário que se construam políticas públicas capazes de prevenir
os efeitos maléficos das estiagens e ao mesmo tempo preparar o sertanejo para a
vida no semiárido